As recentes imagens da violência intolerante contra religiosos de matriz africana escancararam um problema recorrente desde pelo menos a década passada: a ameaça de grupos armados aos cultos afro em favelas e bairros populares do Rio. Além do horror e indignação frente a tudo que os vídeos mostraram, eles também fizeram ressurgir questões a respeito de como o ódio religioso pode ter chegado a tal ponto.
Segundo a professora do Departamento de Sociologia da UFF e autora do livro Oração de Traficante: Uma Etnografia (Ed. Garamond), Christina Vital, esse nível intolerância tem a ver com um caldo de cultura que mistura religiosidade popular, o que chama de teologia do domínio com o contexto de violência produzido pela relação do Estado com os territórios populares.
Christina conta que, nos anos 2000, apareciam sinais decisivos de uma virada evangélica nas favelas e periferias do Rio de Janeiro. Este é um fenômeno que, para muito além de apenas religioso, tem se refletido em diferentes aspectos do cotidiano das comunidades: na visão de mundo de moradores, no comércio, na estética e nos valores. Todas essas transformações – que se deram em diferentes escalas de região para região – estão ligadas ao fortalecimento de uma verdadeira cultura neopentecostal que floresce nos territórios populares do Rio.
Como outros habitantes desses espaços, os traficantes também receberam esse tipo de influência, alguns deles inclusive crescendo em famílias evangélicas. Crhistina explica que, embora a intolerância não caracterize tais comunidades de fé, há lideranças que têm estimulado a ideia de uma batalha espiritual em curso. Nela o mal estaria situado justamente naqueles mais vulneráveis socialmente: os adeptos das religiões de matriz africana. Confira a entrevista.
Na cabeça de pessoas já envolvidas com controle armado de territórios e possivelmente com outras atividades ou condutas criminosas não há contradição entre suas práticas e certas bases do discurso cristão (mesmo aquele vinculado ao neopentecostalismo)? Como essas contradições se acomodam?
Há uma questão para os traficantes que se auto-declaram “traficantes evangélicos”, “traficantes de Jesus”, “traficantes do senhor”, pois isso é algo delicado tanto para alguns traficantes quanto para as comunidades religiosas locais. Em parte porque, embora vários traficantes participassem da vida na igreja, vão semanalmente a cultos, participem de campanhas e escrevam diários onde falam do desejo de passar a uma vida “correta”, vários deles têm dificuldade de assumir essa identidade porque acabam não se vendo integralmente naquele exercício ético e disciplinar anunciado proposta evangélica pentecostal. Por outro lado, outros falam que são evangélicos e são de Cristo. Agora, na comunidade evangélica essa é uma questão muito séria, porque não são poucos os membros rechaçam essa proximidade, afirmando que os criminosos não são evangélicos de verdade. E estes quando assim se anunciam provocam reações de membros da comunidade religiosa que, por sua vez, insistem que aquilo é um “falso testemunho”, um testemunho ruim para os evangélicos. Um “traficante evangélico” é algo encarado como mancha moral sobre a percepção a respeito dos evangélicos em geral. Então muitas são as pessoas críticas dessa aproximação. Algumas delas tem se pronunciado em redes sociais para afirmar que esses traficantes não os representam.
De outro lado, várias das ações que partem de um ou mais chefes do tráfico parecem perder a intencionalidade primeira – que é de inspiração religiosa – se transformando em instrumentos como quaisquer outros de demonstração de força, de intimidação do outro, o que passa também pelo campo religioso. Então, para além do objetivo que nos parece mais claro – que é coibir a presença, o crescimento e, no limite, a existência de religiões de matriz africana em favelas -, esse também é um comportamento que visa exibir força e poder local e deseja agradar a uma comunidade imaginada pelos traficantes em questão. Uma comunidade que, na cabeça dos criminosos, aprovaria uma medida violenta como a que vimos nos vídeos. Afinal estamos falando de favelas com presença majoritariamente evangélica.
Como começa a aproximação de alguns grupos que atuam no varejo da droga em comunidades pobres do Rio de Janeiro e seus líderes com a cultura neopentecostal?
A primeira coisa pra pensar essas aproximações é ter em mente que esses traficantes integram um contexto cultural das favelas e periferias que, a partir da década de 1990 e mais acentuadamente nos anos 2000, é marcado pela presença do pentecostalismo, com sua gramática e sua estática. Vários desses traficantes foram formados em lares evangélicos, compondo uma segunda ou terceira geração pentecostal em suas famílias. Desse modo, o referencial moral e estético pentecostal já lhes era de acesso simples no núcleo familiar, assim como nos contatos cotidianos nos seus lugares de moradia. Durante o desenvolvimento do meu trabalho encontrei muita dificuldade inclusive no universo da pesquisa sociológica e antropológica de religião para desenvolver esse argumento. A literatura que relacionava o mundo do crime com o das religiões de matrizes africanas não sofria estranhamento nem por parte de pesquisadores e nem da sociedade. Mas dada a ética e o lugar moral que o cristianismo tem no Brasil e no mundo, a proximidade do crime com uma religião que se apresenta como eticamente superior – com uma disciplina que orienta uma conduta correta – a ideia de um traficante evangélico foi de difícil assimilação. Quando comecei a apresentar dados etnográficos sobre a questão não foi fácil. Várias pessoas duvidavam que poderia existir algo como um “traficante de Jesus”, pois de fato essa figura representava afinidade entre dois universos aparentemente incompatíveis.
Na década de 1990 ainda existiam muitos registros do contato de traficantes com o universo católico popular e mesmo com religiões afro-brasileiras. Eles usavam guias, faziam tatuagens com santos e entidades. Mas nos anos 2000 fui observando uma mudança tanto no uso corporal das imagens como nas pinturas em paredes das comunidades. Se na década de 1990 eram os santos que operavam por um sincretismo – se aparecia um São Jerônimo, que ao mesmo tempo poderia ser Xangô; ou São Cosme e São Damião, sempre como uma referência às religiões afro-brasileiras -, isso muda nos anos 2000, quando surgem trechos bíblicos, usualmente do antigo testamento, apresentando-se numa estética que remetia aos textos históricos antigos, em papiros.
Numa das facções, o Terceiro Comando Puro, houve a conversão de um traficante importante para a vinculação de outros a essa gramática e estética pentecostais, bem como para a difusão das pinturas que mencionei na favela de Acari, que foi meu caso etnográfico. Mas isso aconteceu em outras favelas também como no Santa Marta, na Rocinha, em comunidades da Maré e da Baixada Fluminense.
Você acha que hoje a atuação de igrejas com esse perfil em unidades prisionais pode de alguma forma reforçar a identificação de membros de facções com certa visão de mundo religiosa, que prega a existência de uma espécie de guerra espiritual do bem contra o mal?
A passagem pelo sistema prisional é absolutamente fundamental na atividade criminosa. Isso de modo geral. Porque até quem não tem facção, no sistema prisional ou em unidades sócio-educativas, é dividido por facção. Então você é empurrado pelo Estado para assumir uma identidade com o crime. E em razão disso vem surgindo uma nova facção em presídios que se apresenta a partir de uma gramática religiosa cristã. Então a passagem pelo presídio é importante para esse processo também, juntamente com o contexto cultural mais geral. No presídio também há uma ação religiosa bem significativa. Eu mesma entrevistei para meu livro um traficante que tinha se convertido na prisão e esse não é um caso isolado.
Diante da violência escancarada em vídeos que passaram a circular essa semana, movimentos, organizações e representantes de religiões de matriz africana têm – e com razão – exigido ações do poder público frente à intolerância. Acontece que as vítimas e espaços religiosos em questão se encontram em lugares onde tradicionalmente o Estado tem uma presença, sobretudo, policial, cuja lógica de intervenção é tão conhecida quanto ineficaz. É o momento de dialogar com líderes religiosos pentecostais que atuam nessas comunidades? É um diálogo possível?
De fato é um momento excelente para organizações e grupos que atuam no Estado produzirem diálogo com diferentes lideres pentecostais. Tem uma questão aí que é pensar a complexidade desse fenômeno, porque não há só lideranças que insuflam o ódio. Há lideres sérios que estão militando pela melhoria de vida de um número significativo de pessoas. Então é preciso que aqueles que têm uma atuação mais respeitosa em relação ao outro comecem a ganhar espaço. Os evangélicos raivosos não representam a maior parte dos evangélicos no Brasil. É preciso que se faça pesar um estigma sobre os intolerantes. Porque se religião é ligada a paz, acolhimento e amor, o que esse tipo de discurso prega é completamente diferente. As bases desse tipo de pregação não são novas. Elas têm a ver inclusive com uma teologia do domínio que prega o combate ao mal, localizado este mal justamente em grupos mais vulneráveis socialmente.
Campanhas de esclarecimento são capazes de atingir aqueles que acreditam lutar contra um mal absoluto?
Acho que além de serem capazes de atingir essas pessoas, sim, essas campanhas podem formar gerações. O mais importante é atuar de modo contundente em torno da noção de respeito e de liberdade. O que se quer não é que as pessoas gostem das mesmas coisas ou que se sintam representados pelas mesmas manifestações, mas que se compreenda os limites das possibilidades de ação religiosa. Se trata de fortalecer uma noção de respeito, onde o outro pode escolher o que quer sem ser agredido por isso. Pode ser por meio de campanhas publicitárias, campanhas do Estado, inclusive aquelas dirigidas a escolas públicas, que devem ser lugares de diversidade. Hoje quando falamos de diversidade só se pensa em sexo, mas não é só isso. É uma questão de respeitar a opinião do outro. O fundamental é insistir no respeito à diversidade e na produção de estigmas sobre os intolerantes, porque esse tipo de comportamento é insustentável num mundo globalizado de encontros culturais intensos e constantes.
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