ausência de políticas públicas inclusivas e decisões judiciais nitidamente preconceituosas demonstram que ainda não estamos libertos dessas práticas dos capitães do mato
09/09/2017
O DIA
Rio - Há mais de cem anos foi abolida a escravidão no Brasil, mas seus efeitos ainda estão estampados na sociedade como tatuagem a lembrar o horror dessa prática. O holocausto, palavra que designa o extermínio dos judeus europeus na Segunda Guerra Mundial, é lembrado permanentemente através de eventos e museus espalhados pelo mundo como forma de preservar a memória e evitar que se repita.
Outro holocausto histórico que durou mais de quatro séculos é a escravidão e o sacrifício dos africanos que foram arrancados de suas nações de origem, separados de sua cultura, religião e família para atravessar o Atlântico em condições adversas e cruéis para servir de escravos para os colonizadores e a elite colonial. Se a escravidão foi abolida há mais de cem anos, suas consequências ainda clamam por justiça social, e o açoite ainda se faz presente por ações e omissões do poder público e da sociedade, que ainda destina ao pelourinho os descendentes desse povo tão sofrido.
A ausência de políticas públicas inclusivas e decisões judiciais nitidamente preconceituosas, como os mandados de busca e apreensão coletivos e indiscriminados destinados aos guetos empobrecidos onde residem em sua maioria negros e pobres, demonstram que ainda não estamos libertos dessas práticas dos capitães do mato.
Assim como fazem os irmãos judeus, está na hora de erguer um museu para coletar, preservar e lembrar as memórias dolorosas desse passado histórico tão vergonhoso para promover o estudo e o debate em torno desse tema tormentoso e evitar que continue frutificando em nosso meio.
A Casa da Cidadania renascera com a ação protetora de Joãosinho Trinta, que acolheu nesse espaço as crianças e adolescentes remanescentes da Chacina da Candelária, dando a eles abrigo, alimentação e educação. E, mais tarde, surgiu a ação cidadã de Betinho, que conscientizou a sociedade sobre a necessidade da solidariedade como instrumento essencial para matar a fome daqueles que clamam por alimentação, educação, cultura e justiça, utilizando do mesmo espaço. Bem próximo está o Cais do Valongo, onde aportaram milhares de africanos arrancados de suas raízes para serem sacrificados pelos horrores da escravidão.
Ainda que não seja um resgate, pelo menos essa iniciativa de criar o Museu da Escravidão e da Liberdade pela Prefeitura do Rio de Janeiro no mesmo espaço onde tanto se exercita a cidadania, o Edifício Docas Pedro II, já é um início que prenuncia a necessidade de se resgatar essa dívida histórica e promover a integração social, democrática, igualitária e real de nosso povo, sem qualquer resquício do velho preconceito racial.
O Museu da Escravidão e Liberdade deve surgir para adoçar nossa história desse amargor que somos obrigados a levar como se fosse um pecado original a macular toda e qualquer tentativa de alcançar o marco civilizatório da igualdade, fraternidade e legalidade.
Siro Darlan é desembargador do Tribunal de Justiça e membro da Associação Juízes para a Democracia
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