segunda-feira, 26 de junho de 2017

Você sabia disso ? - As andanças de Lima Barreto pelo Rio



Antigo endereço. A única casa onde Lima Barreto morou que está preservada: imóvel, em unidade da Força Aérea Brasileira, na Ilha do Governador, é usado como alojamento - Fernando Lemos / Fernando Lemos




RIO — É preciso obter autorização em Brasília para entrar no Parque de Material Bélico da Aeronáutica, na Ilha do Governador. O acesso ao quartel é rigidamente controlado, com dois portões sempre fechados e meia dúzia de soldados armados na guarita de segurança. Lá fica guardado o arsenal de guerra da Força Aérea Brasileira no Rio, um tesouro para o corpo militar. Vencidas as etapas de acesso, surge uma casa despretensiosa do lado esquerdo na qual pouco se destaca: talvez o telhado, o alpendre e algumas mangueiras e laranjeiras ao redor. Aquela casa também guarda um tesouro, mas de outra grandeza: é o único endereço em que morou o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto ainda preservado na cidade, embora tão modificado e usado atualmente como alojamento de soldados. Autor de uma prolífica obra de 17 volumes que inclui romances, crônicas, contos, artigos e correspondências, Lima Barreto será o autor homenageado na Feira Literária de Paraty (Flip), no mês que vem.



Nascido numa sexta-feira de 1881, dia 13 de maio, numa casa na Rua Ipiranga, em Laranjeiras, o segundo de cinco filhos da professora primária Amália Barreto e do tipógrafo João Henriques de Lima Barreto morou em diversos endereços da cidade. Passou pela Rua Dois de Dezembro, no Flamengo, pelas ruas das Marrecas e do Resende, no Centro, pelos bairros Catumbi, Santa Teresa e Boca do Mato, então chamado de Europa dos pobres ou Suíça suburbana, na região do Grande Méier. Até que, aos 9 anos, já órfão de mãe, chegou com sua família à Ilha do Governador, de onde saiu aos 21. O lugar era conhecido como Sítio do Carico por causa do vizinho Morro do Carico. A estrutura do imóvel se mantém, mas janelas e portas de madeira foram trocadas por outras de alumínio.

— Houve um acréscimo nos fundos e a varanda foi ampliada por toda a extensão. Mas, assim que eu a vi, sabia que era a casa do Lima — afirma o pesquisador André Luiz dos Santos, professor titular de letras e literatura brasileira da Estácio de Sá, primeiro a identificar o local. — O telhado é o mesmo, e ela continua com nove cômodos. Presumo que até as árvores sejam daquela época, principalmente as mangueiras. Há muitos formigueiros no terreno também, o que é curioso por causa do “Triste fim de Policarpo Quaresma” — afirma o autor da biografia “A casa do louco”, lembrando a peleja que o protagonista enfrenta, no livro mais aclamado do escritor, contra as formigas que destroem sua plantação.

Foi durante a pesquisa de mestrado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) que Santos fez a descoberta, há 15 anos. Quem o conduziu na busca foi o próprio escritor, com as muitas descrições que faz da residência em sua obra, em que realidade e ficção se confundem. Em “Triste fim”, ela aparece como Sítio do Sossego, para onde Policarpo se muda após passar seis meses internado em um hospício e sair de lá “envolvido, penetrado da tristeza do manicômio”. O sítio também está nas crônicas “O Estrela” e “Homem ou boi de canga”. A Força Aérea Brasileira não autorizou o acesso ao interior da casa, que tem uma placa na entrada anunciando ter sido residência de Lima Barreto, pois havia soldados dormindo nos quartos — uma ironia para um anarquista como Lima, que zombava do patriotismo e de qualquer autoridade.

Em 1902, surpreendido pela loucura do pai, o escritor assume a família. Abandona a Escola Politécnica, frustrando o sonho do pai de vê-lo engenheiro, e consegue a única vaga de um concurso público para trabalhar no Ministério da Guerra. A família se muda para a Rua Vinte e Quatro de Maio, no Engenho Novo, e depois para Todos os Santos, de onde nunca mais saiu. O bairro do Grande Méier crescia naqueles dias, atraindo funcionários públicos, industriais, comerciantes, profissionais liberais. Segundo o Censo de 1906, feito em apenas um dia no Distrito Federal (20 de setembro) e a dois meses do mandato do prefeito Francisco Pereira Passos se encerrar, habitavam essa região 29.629 brasileiros, 3.443 portugueses, 379 italianos, 275 espanhóis, 65 turcos e 58 alemães.

O primeiro endereço de Lima Barreto em Todos os Santos foi no alto da Rua Boa Vista, na casa de número 76, que não existe mais. A Rua Boa Vista também já não existe — foi rebatizada como Elisa de Albuquerque. Do lado de fora da casa era possível ouvir os gritos de João Henriques, que perdeu as faculdades mentais enquanto era o responsável pelas duas “colônias de alienados" que ficavam na então rural Ilha do Governador. Um morador da rua, ao ser indagado se conhece a história de Lima Barreto naquelas bandas, responde na hora “o autor de Clara dos Anjos?” — romance que termina com a melancólica conclusão de Clara, a protagonista: “Nós não somos nada nessa vida”.


Oswaldo Clapp, de 85 anos, nascido na mesma Rua Boa Vista, mora em um casarão comprado por seu avô nos primeiros anos do século passado. Seu pai, Saul Clapp, era agente da estação ferroviária do Méier. Contava que Lima Barreto e ele eram bons vizinhos e conversaram algumas vezes na entrada da casa, e que o escritor teria chegado a entrar na residência, mantida até hoje como era originalmente.

— Meu pai dizia que eles tinham boa relação. Depois que a família se mudou, a casa onde eles moravam foi destruída por cupim — afirma Oswaldo.

A pouco mais de um quilômetro dali fica a Rua Major Mascarenhas, pequena via entre o NorteShopping e o estádio Engenhão, onde Lima Barreto morou com sua família entre 1913 e 1922. O escritor percorria todos os dias o caminho de ferro rumo à Central do Brasil, tomando o trem na hoje desativada estação Todos os Santos para ir ao trabalho, de onde saía às 15h e iniciava a peregrinação pelos bares do Centro, começando na Rua Saché — atual Travessa do Ouvidor, na qual ficava a livraria Schettino, onde ele dormia quando estava bêbado demais para tomar o trem.

No lugar da casa 32, na Major Mascarenhas, foi erguido há dez anos o condomínio Renovare, com 88 apartamentos. O professor André Luiz dos Santos ainda tentou salvar o imóvel, solicitando à prefeitura o seu tombamento. Foram dois pedidos no ano 2000, ambos rejeitados pelo município, que deu como motivo o fato de o imóvel não ser nenhuma joia da arquitetura.

— Disseram que era uma construção comum. Foi a casa de Lima Barreto, que ele chamava de Vila Quilombo — lamenta Santos.

E assim foi abaixo a casa onde morreu o escritor duas vezes rejeitado pela Academia Brasileira de Letras — na terceira tentativa, retirou sua candidatura antes do pleito —, duas vezes internado por alcoolismo no Hospital Nacional dos Alienados, no edifício histórico da Praia Vermelha, ocupado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lima também morou em outra casa na mesma rua, mas, segundo o atual proprietário, o aposentado Manoel Nascimento, de 68 anos, ela foi inteiramente modificada.

— Comprei essa casa há mais de 20 anos. A pessoa que me vendeu disse para não me surpreender se algumas pessoas perguntassem se a casa foi de Lima Barreto, porque foi mesmo. Mas já foi muito alterada. Tinha uma varandinha na frente que não tem mais. Tem um terraço que não existia — conta.

Lima Barreto está sendo redescoberto quase cem anos após sua morte. Seis livros serão lançados antes ou durante a Flip, entre eles a aguardada biografia “Triste visionário” (Companhia das Letras), de Lilia Moritz Schwarcz, a reedição de “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá” (Ateliê), qualificado como “obra preciosa” por Monteiro Lobato, em carta de 1918 endereçada a Lima, e também a nova edição de “A vida de Lima Barreto” (Autêntica), biografia do escritor lançada em 1952 por Francisco Assis Barbosa. Segundo Beatriz Resende, que pesquisa a vida e a obra de Lima há 40 anos e também está lançando dois trabalhos, “a retomada é fruto do estudo da reconfiguração das questões de raça e resultado de um novo olhar sobre o que é literatura”:

— Lima é autor de uma obra vasta e complexa. Há muito tempo, queríamos que ele fosse homenageado, agora chegou o momento. Por toda a questão política que vivemos, também. Ele mostra o tempo todo o que é a República: são homens vendidos. Escreveu sobre tudo de sua época e era o único a falar do subúrbio.

Lima Barreto morreu de colapso cardíaco em 1º de novembro de 1922. Estava no quarto, lendo a revista francesa “Revue des deux mondes”. Seu pai despertou da demência e perguntou pelo filho. Faleceu dois dias depois, como se as duas vidas estivessem amarradas por um fio invisível. Pai e filho foram enterrados no jazigo 8.024, na quadra 14, no Cemitério São João Batista.



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