Decisão será tomada em junho do ano que vem, em uma reunião do Comitê do Patrimônio Mundial na Cracóvia, na Polônia
POR SIMONE CANDIDA
RIO — Entre os séculos XVI e XIX, o Brasil foi o destino de cerca de 4 milhões de africanos transformados em escravos. E um dos principais pontos de entrada desse intenso tráfico negreiro no país foi o Rio, mais precisamente o Cais do Valongo. Pesquisadores calculam que, ao longo de 20 anos, um milhão de homens e mulheres desembarcaram de navios em um atracadouro rústico erguido às margens da antiga Praia do Valongo, a partir de 1811. Dois séculos depois, com a descoberta arqueológica do local durante obras de revitalização da Zona Portuária, a cidade começou a remontar sua história. Já declarado patrimônio carioca e nacional, o pequeno porto concorre agora ao título de Patrimônio da Humanidade, concedido pela Unesco. A decisão será tomada em junho do ano que vem, em uma reunião do Comitê do Patrimônio Mundial na Cracóvia, na Polônia.
IMPORTÂNCIA HISTÓRICA
Coordenador do grupo de trabalho que apresentou a candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade, o antropólogo Milton Guran vê grandes chances de aprovação da iniciativa. Pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF e integrante do Comitê Científico Internacional do Projeto Rota do Escravo, da Unesco, ele explica a importância do local:
— Trata-se do único vestígio material de um porto de desembarque de africanos nas Américas. Todos os outros foram destruídos ou encobertos. E é muito peculiar, já que ninguém calçava um porto de desembarque de escravos. Eles eram tratados como mercadorias, desciam na areia mesmo. Ainda não sabemos por que o atracadouro foi calçado.
Apresentada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pela prefeitura, a candidatura recebeu o aval do Comitê do Patrimônio Mundial no fim de 2015. No mês passado, o sítio arqueológico passou por um teste: recebeu a visita de um representante do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, órgão consultivo da Unesco. Era um arqueólogo argentino, que fez uma avaliação técnica do cais e viu de perto alguns do mais de 500 mil artefatos encontrados debaixo da terra pela equipe da também arqueóloga Tânia Andrade Lima, responsável pela descoberta. Para a exibição de peças como cachimbos e anéis de piaçaba, foi montada uma pequena mostra no prédio do futuro Laboratório de Arqueologia Urbana, na Gamboa.
DECISÃO SAIRÁ EM JUNHO
Até o anúncio da decisão da Unesco, que deverá sair em junho de 2017, a candidatura do Cais do Valongo será analisada por especialistas em duas reuniões técnicas. Segundo o Iphan, o Brasil deverá ter acesso a um relatório com o posicionamento do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios em maio. No mês seguinte, será realizada a avaliação final do processo pelo Comitê do Patrimônio Mundial.
O dossiê da candidatura conta com mapas e números que remontam a história do mercado de escravos instalado na área do Cais do Valongo. Desativado em 1831, quando o tráfico negreiro foi proibido graças a pressões feitas pela Inglaterra, o pequeno porto de chegada de negros acabou sendo, em 1843, soterrado, remodelado e rebatizado para receber a princesa Teresa Cristina, mulher de Dom Pedro II. Em 1911, com uma grande reurbanização da área, tudo foi aterrado, dando lugar a uma praça.
— Os historiadores sempre souberam que naquela região havia um grande complexo de tráfico de escravos, com barracões e casas de “estocagem de “mercadoria”. Tinha ainda uma espécie de hospital e um cemitério, onde eram enterrados os que não resistiam às longas viagens — diz Milton Guran. — Durante os trabalhos arqueológicos, descobriu-se que o Cais do Valongo permanecia inteiro. Ele poderia ter sido completamente eliminado na época da construção do Cais da Imperatriz, mas estava lá, bem preservado. Sua descoberta colocou a negritude brasileira diante dos nossos olhos de forma incontestável.
Nas 400 páginas do dossiê da candidatura apresentada à Unesco (elaborado ao longo de um ano), estão reunidos dados que comprovam, além da importância do sítio arqueológico, a riqueza e a raridade do material resgatado. Com calçamento tipo pé de moleque, as estruturas do Cais do Valongo foram localizadas a uma profundidade que variava entre 1,20m e 1,80m. Do solo, arqueólogos retiraram muitos amuletos e adornos religiosos.
— As escavações resultaram no resgate de mais de um milhão de artefatos, sendo que mais da metade, 507 mil, estavam na área do Cais do Valongo. É de longe o mais importante sítio da diáspora negra no mundo — avalia Guran.
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A história do cais, de acordo com o dossiê, está relacionada a tentativas da corte brasileira de esconder o tráfico negreiro: “A partir de 1774, por determinação do Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Brasil, o desembarque de africanos no Rio foi integralmente concentrado na região da Praia do Valongo, onde se instalou o mercado de escravos que, além das casas de comércio, incluía um cemitério e um lazareto (local para quarentena de doentes)”. O objetivo era retirar da Rua Direita — atual Primeiro de Março — cenas constrangedoras de negros acorrentados e quase nus.
FÉ NA CANDIDATURA
Para boa parte da comunidade de afrodescendentes, os motivos que justificam a tentativa de transformar o Cais do Valongo em um Patrimônio da Humanidade são, acima de tudo, espirituais. Não faltam reverências ao pedaço de chão pisado por um povo que, apesar do sofrimento, ajudou, por meio da música, da gastronomia, das habilidades manuais e da religião, a formar a identidade brasileira.
— Senti uma emoção única aqui. É o nosso altar, um terreno onde devemos fazer nossa quizomba, além de preces. Amo este lugar. Eu, como muitos, vim daqui. Tenho fé que o cais será reconhecido como Patrimônio da Humanidade. Qual a importância disso? Saber que, com o título mundial, será mais bem cuidado, protegido. Muitos africanos que passaram por este lugar ajudaram a construir o Rio — diz a mãe de santo Celina de Xangô, presidente do Centro Cultural Pequena África.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/cais-do-valongo-pode-se-tornar-patrimonio-da-humanidade-20340002#ixzz4PF8Qj2cz
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