“Somos todos feitos do que os outros nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente.”
-- Tzvetan Todorov (A literatura em perigo, 2009)
A importância da leitura dentro da história da humanidade sempre surgiu como uma condição essencial para a construção do poder crítico do indivíduo. Para entender -- e compreender -- os acontecimentos de sua época, a pessoa deve possuir ferramentas que apenas o conhecimento pode transmitir.
Esse conhecimento pode estar guardado em inúmeros lugares. Porém, para escutarmos o que as gerações antigas têm a nos dizer, precisamos consultar os livros, pois neles ficaram registrados seus pensamentos, incluindo certas instruções para a resolução de problemas que, no fundo, apenas se repetem.
Vejamos um exemplo. Milênios atrás, Aristóteles, um filósofo grego, escreveu um livro chamado Política, no qual analisa o contexto de sua época e de épocas anteriores, além de apontar os regimes políticos possíveis. Apesar da grande distância de tempo, os teóricos políticos dos tempos atuais precisam passar pelo estudo das teorias aristotélicas para refletir acerca das condições atuais.
Para continuar na Grécia, passemos para o professor de Aristóteles, Platão. Em sua mais conhecida obra, A República, ele descreve um modelo ideal de cidadão que, se fosse reproduzido em larga escala dentro da cidade, constituiria uma sociedade perfeita, na qual todas as pessoas viveriam em perfeita harmonia. Milênios depois de ter escrito sua teoria, ele permanece sendo referência para os estudiosos posteriores, que o leem com bastante atenção.
Esses dois exemplos citados serviram para que possamos perceber a importância dos pensamentos antigos para a reflexão contemporânea dos acontecimentos. E até hoje, o modo mais comum de registro ainda é o livro.
E o que é ser leitor?
Para ser leitor, basta ler.
Simples.
Se a leitura for assim considerada, então os brasileiros não tem problema algum com ela, já que estão constantemente lendo alguma coisa, seja na internet, nas placas de trânsito, nas legendas dos filmes e dos jogos de videogames ou nos anúncios dos shopping centers.
Leitura é o que não falta no dia a dia das pessoas no Brasil e no mundo. Nesse caso, é melhor recolher o texto que estou escrevendo, porque o brasileiro lê, sim. Mas será?
Para organizar melhor os argumentos, foi escolhido uma fonte de referência que se renova de dois em dois anos e já se encontra no terceiro volume, que é a pesquisa Retratos da leitura no Brasil, feita pela Instituto Pró-livro de São Paulo. Nela, pessoas espalhadas por todo o país responderam diversos questionários, e foi possível saber, dentre muitas coisas, não apenas a quantidade de pessoas que têm o hábito da leitura, mas também porque os brasileiros não leem.
Segundo o livro Retratos da leitura no Brasil, leitor seria “aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos 1 livro nos últimos 3 meses”. E não leitor seria “aquele que não leu, nenhum livro nos últimos 3 meses, mesmo que tenha lido nos últimos 12 meses”. Sendo assim, excluem-se leituras em jornais, revistas, folhetos, internet etc.
Na pesquisa feita em 2007, o número de livros lidos por habitante/ano era de 4,7. Na pesquisa divulgada em 2013, esse número caiu e atingiu a marca de apenas 4 livros por ano, sendo 2,1 inteiros e 2,0 em partes.
Preocupante, não?
Se considerarmos que grande parte das pessoas pesquisadas ainda participa de algum estágio da formação escolar ou acadêmica, muitos desses quatro livros por ano são leituras técnicas e/ou obrigatórias, e as quantidade de leituras espontâneas, aquelas que a pessoa faz por iniciativa própria, são ainda menores.
Outro ponto importante para identificarmos os leitores no Brasil são as regiões. O Nordeste é o que mais lê, com cerca de 4,3 livros por ano. Já o Norte puxa toda a média para baixo, com 2,7.
Com isso, é possível verificar que o brasileiro já lia pouco em 2007. Contudo, conseguiu diminuir ainda mais esse número na última pesquisa e alcançou uma marca preocupante para um país que deseja se desenvolver e que figura entre as dez maiores economias do mundo
E por que o brasileiro não lê?
Com o baixo interesse do brasileiro em leitura confirmado pela pesquisa, resta agora tentar entender os motivos que geram essa problemática. Vamos lá.
Pais que não têm o hábito de ler não são boas referências de leitura para o filho.
Para que uma criança descubra o prazer pela leitura, a primeira influência que ela pode receber é a familiar. Assim, se os pais têm o hábito de ler constantemente em seus horários livres, a criança rapidamente vai associar essa prática a uma coisa legal e divertida.
Mas, se ao contrário, os pais não têm o hábito de pegar um livro nas mãos, a criança vai apenas reproduzir aquilo que vê em casa.
Um detalhe interessante para se destacar nesse ponto é sobre o que os brasileiros costumam fazer quando têm tempo livre, ou seja, quando estão fora do trabalho, da escola ou de quaisquer obrigações. A resposta é surpreendente.
A leitura ocupa uma singela sétima colocação colocação, atrás de assistir à televisão, descansar e escutar música ou rádio. Porém, um dado rivaliza com esse que acabamos de descobrir. Questionados sobre as razões que o fizeram não ter lido nos últimos três meses, 53% dos brasileiros responderam que não tinham tempo para ler.
Com esses dados em mãos, fica fácil perceber que, embora tenham rapidamente apontado, o verdadeiro problema não é a falta de tempo, e sim a falta de interesse pela leitura. O que acontece é que a pessoa prefere tomar uma cerveja no bar com os amigos, assistir a um jogo de futebol ou a um filme do que sentar numa poltrona ou sofá para ler um livro.
O mesmo ocorre quando as pessoas questionam que não têm dinheiro para comprar um livro ou que o livro custa caro. Muitas vezes, sim, ele custa caro, mas o mesmo sujeito que faz essa reclamação reserva uma quantia de seu salário para gastar em farra no final de semana.
Então, mais uma vez, o problema não é o dinheiro, e sim o interesse.
O paradoxo do preço do livro
Ah, o preço do livro é alto demais? Chegou a hora de você conhecer o paradoxo que envolve esse problema.
Resumidamente, para o preço do livro ser definido, a editora soma diversos valores, que incluem as seguintes etapas:
1. produção (que se resume basicamente em preparação de texto, diagramação/projeto gráfico, revisão e design de capa);
2. impressão;
3. marketing;
4. distribuição.
Todas essas etapas variam de preço, sempre dependendo da qualidade do profissional que vai executá-las.
Porém, uma delas possui um detalhe que é universal: quanto mais livros são impressos, mais barato fico o preço unitário.
Isso acontece porque o custo de colocar uma máquina de impressão para funcionar é alto e, para se manter, as gráficas precisam dar prioridade às grandes tiragens, que, embora utilizem mais material, compensam na continuidade do trabalho.
Para ilustrar, vamos usar um exemplo. Digamos que a tiragem de um determinado título tenha sido de 3000 exemplares e seu preço de capa -- ou seja, aquele aplicado nas livrarias -- seja R$40,00. Em virtude do preço gasto na gráfica e em todas as etapas de produção, fica impossível para a editora fazer um preço menor.
Todavia, se ela optasse por mandar imprimir 10.000 exemplares, provavelmente o preço de capa do livro baixaria para algo em torno de R$20,00 e R$30,00. E por que as editoras não fazem isso sempre? Porque não existem leitores suficientes para bancar uma tiragem de 10.000 exemplares.
Entenderam o paradoxo?
As pessoas não comprar livros por os considerarem caros, e os livros são caros porque as pessoas não os compram.
A influência da família no cultivo do hábito da leitura em casa é de extrema importância. Pais que gostam de ler estimulam seus filhos. E essa questão muitas vezes não tem relação com o baixo ou alto poder aquisitivo, já que bibliotecas existem para conceder o acesso.
Mas e quando os pais não sabem ler?
Bem, esse é o nosso próximo tópico.
O analfabetismo
Os dados coletados pela pesquisa Retratos da leitura no Brasil indicam que os índices de leitura aumentam com o crescimento do nível de escolaridade, alcançando 7,7 livros por ano entre as pessoas com nível superior, 3,9 com nível médio, 3,7 da 5a à 8a séries e 2,5 até a 4a série.
Esses números mostram que a leitura tem uma forte relação com a escolaridade.
Embora muitas pessoas hoje já possuam acesso a níveis de escolaridade superior, muitas delas não possuem habilidades de leitura ou até mesmo são analfabetas, como foi o caso do rapaz que passou em 9o lugar no vestibular de Direito em 2001 sem saber ler e escrever.
Isso impede que o vínculo afetivo da pessoa com o livro seja possível, uma vez que, para ela, ler é um sacrifício tremendo.
Mas como explicar que pessoas com níveis de escolaridade concluídos não saibam ler ou tenham grandes dificuldades? Vamos voltar um pouco no tempo.
A partir da década de 1980, é possível perceber profundas mudanças conceituais e metodológicas no processo de alfabetização. Por décadas, o modelo tradicional foi representado pela cartilha, a qual se constituía num mero código de representação de linguagem oral.
Hoje, é possível ver que a escrita passou a ter um caráter simbólico.
Esse modelo representado pela cartilha tem origem num contexto político bem singular de nosso país. A partir da década de 1960, por conta da evolução tecnológica, os países economicamente desenvolvidos passaram a exigir que o trabalhador soubesse apenas o lado funcional da escrita, de modo a conseguir operar técnica e cientificamente as teorias e os aparelhos usados em suas demandas de produção.
Dessa forma, os sistemas educacionais do mundo inteiro tiveram que se adaptar às novas regras.
Com esse cenário armado e uma ditadura definindo as regras do país, o brasileiro se acostumou a identificar no professor a figura da autoridade, que não dá espaço para a indisciplina, mas que também afoga as práticas sociais de leitura e escrita, as quais incorporam condições essenciais para o exercício da cidadania plenamente consciente.
Dessa época para cá, passaram-se cerca de cinquenta anos e, apesar de todas as mudanças que vêm sendo aplicadas no sentido de alfabetizar as pessoas de modo a torná-las “alfabetizadas letradas”, e não apenas meras reprodutoras de informações, ainda assim não conseguimos resultados satisfatórios.
Um exemplo disso são as leituras obrigatórias nas escolas.
Grande parte delas são clássicos das literaturas brasileira e portuguesa, entretanto, a despeito de sua relevância histórica, não são nada sedutoras para crianças e adolescentes que estão adentrando nesse universo. Livros como Senhora, de José de Alencar, e Auto da barca do inferno de Gil Vicente são magníficos, mas verdadeiras esfinges para os estudantes do segundo grau. Por não conseguirem absorver muita coisa das leituras, frustram-se e as abandonam, preferindo se preparar para as provas estudando resumos feitos pelos pouquíssimos colegas que conseguiram entender algo.
Mas a pior consequência desse cenário é o fato de que esse adolescente vai continuar identificando a leitura a algo chato e sem graça, pois sempre que recebeu um livro nas mãos, escutou: “decifra-me ou te devoro”.
Mesmo novo, esse jovem aluno já possui dois desafios tremendos: pais que não gostam de ler e poucos livros interessantes para ler na escola.
Contudo, nos últimos anos, o Governo Federal tem investido muitos milhões de reais para abastecer as bibliotecas públicas e/ou escolares do Brasil. Todos os anos, ele compra milhares de livros que são distribuídos por todas as cidades e que deveriam chegar nas mãos de professores e alunos.
O problema surge quando se verifica que as escolas têm...
Professores mal preparados
Para que alunos sejam bem formados acadêmica e intelectualmente, uma peça não pode faltar: o professor.
Ele é o personagem principal quando o assunto é estímulo à leitura. A sua importância chega ao ponto de até ocupar o topo da lista de quem mais influenciou os leitores a ler, ficando na frente dos pais e dos amigos.
Porém, quando esses professores não possuem uma boa formação ou uma prática de leitura bem firmada, os alunos não detectam que o livro pode ser divertido e permanecem considerando o objeto como uma simples ferramenta necessária para passar de ano.
Uma história curiosa me foi contada por uma especialista em literatura infanto-juvenil. Disse ela que, no ano passado, em uma cidade do interior de São Paulo, uma escola recebeu milhares de livros para abastecer sua biblioteca. Os livros chegaram bem empacotados, ainda exalando aquele cheirinho de papel novo tão gostoso. Porém, a diretora, que certamente não possuía nem o mínimo grau de hábito de leitura, tomou uma decisão que, na cabeça dela, era a mais correta.
Decidiu trancar todos os livros dentro de uma sala.
O motivo?
“Assim os alunos não vão estragá-los”.
Percebem a total falta de consciência literária nessa diretora? Para ela, os livros são objetos que não podem ser estragados. Em virtude disso, devem ficar trancados, longe dos alunos.
E o que os alunos fizeram? Nada, é óbvio!
Se eles não têm pais que gostem de ler dentro de casa, não têm professores preparados para ensiná-los a ler com prazer e os livros ficam trancados dentro de salas, o que mais vocês esperam que aconteça? Os alunos vão continuar indo para a escola, tendo suas aulas, mas, na primeira oportunidade que tiverem, vão querer jogar futebol, assistir à televisão etc.
As escolas não precisam de pessoas que escondam os livros, por melhores que sejam as suas intenções. O que as escolas precisam é promover a educação de verdade.
Para isso, precisa de profissionais e educadores que leiam outros livros além dos didáticos, que ensinem seus alunos a procurar a leitura como forma de resolução através de reflexão interior, que criem condições adequadas para essa função.
A exploração portuguesa não ajudou
Enquanto outros países europeus, com índices bem maiores de leitura que os brasileiros, já possuem milênios de prática, o nosso país, de vida, não tem pouco mais de quinhentos anos. Além disso, por muito tempo, nossas terras serviram, exclusivamente, como fonte de extração de matéria-prima, e pouco desenvolvimento foi feito.
Se para a metrópole portuguesa o Brasil não servia para nada além do envio de riquezas brutas, certamente a leitura não constava na lista de itens mais importantes da agenda imperial. Porém, esse cenário mudou quando as coisas apertaram para Portugal lá na Europa.
Com a ameaça napoleônica de invasão francesa, a corte portuguesa ficou com medo e decidiu se estabelecer em terras brasileiras. Com eles, vieram uma quantidade absurda de barcos que traziam obras de arte, jóias, roupas e, inclusive, toda a Biblioteca Real.
No meio desses barcos, veio também algo que seria muito importante para o estabelecimento da leitura no Brasil: a Impressão Régia.
Em 13 de maio de 1808, foi oficializada por Dom João a instalação de uma casa impressora, que seria destinada a publicar a papelada oficial do governo. Embora fosse reservada apenas para os assuntos do governo, a Impressão Régia foi um marco de mudança, uma vez que, antes dela, os livros que se consumiam no Brasil vinham quase que exclusivamente da Europa.
Se apenas em 1808 o Brasil pôde contar com uma máquina de impressão oficial, por um pouco mais de duzentos anos é que se foi fomentando, a passos de formiga, a leitura. Sendo assim, é natural que nossos índices sejam mais baixos que o restante dos países mais desenvolvidos.
Entretanto, existe um detalhe nessa história. Os Estados Unidos começaram a ser colonizados um pouco antes do Brasil, mas têm um índice de leitura bem maior. Como se explica?
Países católicos, geralmente, leem menos que protestantes
Segundo o intelectual alemão Max Weber, o espírito do capitalismo reside dentro da ética protestante. Dessa forma, a maioria dos países que se desenvolveram durante a Revolução Industrial seguiam a filosofia iniciada por Martinho Lutero na Alemanha, no século XVI.
Para o filósofo, os protestantes possuem uma formação educacional mais técnica, voltada para a pesquisa e para a contestação.
E não é para menos, né?
Lutero foi um padre ordenado pela Igreja Católica, mas expulso por criticar o distanciamento que ela mantinha com os fiéis. Não contente com apenas questionar as bases católicas, ele fez algo terminantemente proibido: traduzir a Bíblia para uma língua diferente do latim. No caso, ele traduziu para o alemão. A partir daí, aqueles que queriam ler a Bíblia e muitos outros livros, poderiam fazê-lo.
Esse distanciamento da Igreja Católica foi criticado por Lutero, que optou por criar sua própria corrente religiosa. Porém, por séculos ela continuou tendo seguidores, que estavam satisfeitos em não ter tanto acesso às informações quanto os protestantes, e aceitaram até 1962 que a liturgia católica seguisse o formato romano e fosse rezada em latim, língua inacessível para quase 100% de seus seguidores nos dias atuais.
Por isso, os protestantes receberam maiores estímulos à leitura (mesmo que, na época, fossem apenas documentos religiosos), enquanto que os católicos eram afastados dos assuntos relacionados à sua igreja e, consequentemente, à leitura e à pesquisa.
Para formarmos um país de leitores, precisamos começar dentro de nossas próprias casas, precisamos entender que a leitura é, sim, prazerosa, e que rende frutos fascinantes para aqueles que a praticam.
Com ela, uma pessoa pode, efetivamente, se tornar cidadã, com poder e consciência crítica. Agora que sabemos os motivos que prejudicam o hábito da leitura no Brasil, podemos identificar as soluções, não acham?
Então levante, pegue o seu livro -- impresso ou eletrônico -- e comece a ler. Qualquer leitura é válida.
Vamos aumentar essa média de leituras por ano no Brasil?
Nota do editor: nenhuma imagem foi inserida nesse post de propósito, para que o foco seja unica e exclusivamente a leitura e a reflexão sobre a leitura no Brasil. O espaço de comentários está aberto para a discussão.
publicado em 19 de Novembro de 2013, 22:00
Filipe Larêdo é um amante dos livros e aprendeu a editá-los. Atualmente trabalha na Editora Empíreo, um caminho que decidiu seguir na busca de publicar livros apaixonantes. É formado em Direito e em Produção Editorial.
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