É uma hipocrisia apoiar adaptações de textos literários para facilitar a leitura. Porque ler nunca é fácil
LUÍS ANTÔNIO GIRON
Chego tarde à discussão sobre a legitimidade de adaptações de obras literárias do passado para facilitar a leitura das novas gerações. Mas não tenho como desviar de um assunto que só se torna relevante porque o Brasil continua a ser o país dos vira-latas (ou do neo-viralatismo) , dos espertalhões e do triunfo da ignorância. As adaptações de livros clássicos não passam de uma camada do aterro sanitário que entulha a cultura do país desde que os portugueses rezaram a Primeira Missa em Porto Seguro e constataram que a população local se mostrava dócil à evangelização. Dá asco pensar no tema, mas vou tapar o nariz e tentar manter a lucidez.
As políticas do livro e da educação nacionais são infames e parece que não irão melhorar nunca. Dessa forma, o futuro de nossa cultura já está traçado: caímos na tentação da visão antropológica que rebaixa o indivíduo a sua condição primitiva e não permite que ele saia do estágio folclórico e étnico a que está condenado desde o início dos tempos. Bons selvagens,os brasileiros são obrigado a celebrar as “manifestações culturais” mais primárias como se a população estivesse condenada sumariamente à fogueira de São João e ao trio elétrico.
Ora, esse ambiente sulfúrico torna coerente e até elogiável a facilitação da leitura - prefiro chamá-la de vulgarização. Afinal, para que submeter os jovens leitores ao sacrifício de ler Homero, Cervantes, Graciliano Ramos e Machado de Assis quando tudo pode ser resolvido numa narrativa direta e concisa no estilo? A vulgarização poupa trabalho do aluno e rende uma boa grana às editoras e aos autores das adaptações de obras de domínio público – que, do contrário, sairiam de graça para o leitor. A ideia de que rebaixar o ato de ler é um gesto culturalmente correto constitui um dos dois argumentos em confronto hoje na discussão das adaptações. O outro preconiza que os textos clássicos não podem ser alterados, pela própria sacralidade artística que eles contêm.
Obviamente, defendo o segundo argumento – embora não acredite na arte como religião. Se valer um testemunho, perdi muito tempo na minha infância e adolescência lendo Homero, Cervantes, Jack London e outros autores clássicos em adaptações de medalhões brasileiros como Clarice Lispector e Carlos Heitor Cony. Isso porque eu deveria ter lido os textos originais, ou pelo menos as traduções diretas. Acabei lendo bons textos de segunda mão de Cony e Clarice que não substituíram os originais. Antes, desviaram minha atenção.
É claro que não havia naquele tempo (como não há agora) edições didáticas desses textos. A produzir introduções, ensaios e notas sobre obras canônicas em edições críticas, as editoras brasileiras sempre preferiram a lei do menor esforço. Em vez de preparar e orientar o jovem leitor, as editoras lhe entregam edições embonecadas e facinhas. O resultado é o que vemos: cada vez mais jovens lendo baboseiras para jovens leitores – a chamada literatura para jovens adultos, uma literatura-salgadinho. O resultado é que os jovens adultos (e crianças) ignoram com crescente soberba os autores importantes. Afinal, para que enfrentar a dieta pesada de Guimarães Rosa se é possível devorá-lo em versão nacho com queijo?
Os jovens nutridos nessa formação rala e prejudicial ignoram também que ler é difícil. Trata-se de uma atividade que precisa ser elaborada ao longo dos anos. Envolve aprendizado, treinamento e, no caso do texto literário, vivência, intimidade com a natureza humana. Se a maior arte dos professores do ensino fundamental e médio do Brasil gostasse mesmo de ler, os estudantes entenderiam que o esforço vale a pena. Mais, que ler é mais compensador que jogar videogame ou assistir a uma série de televisão.
Tudo isso me faz pensar em postar as hashtags #NãoToqueemMachado, #NãoToqueemHomero e #NãotoqueemCervantes e assim por diante. Só de pensar que alguém possa alterar os textos canônicos me dá calafrios. Que dizer quando um professor apresenta um projeto desses ao governo federal e ganha milhões para executar Machado de Assis em praça pública em nome do consumo fácil das tribos autóctones analfabetas funcionais? É o último círculo do inferno. Não toquem na sutileza de Machado de Assis, na concisão de Graciliano Ramos e na complexidade de Guimarães Rosa. Tirem suas mãos porcas da pouca literatura que nos resta!
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