O ódio aos professores
Publicado por PROFESSORESCONTRAOESP on 3 DE JUNHO DE 2016
Texto do Prof. Dr. Fernando Penna (UFF)
Originalmente publicado em 18/09/2015
(comentário em uma publicação da página de facebook “Professores contra o Escola Sem Partido“)
Este foi um comentário de incitação ao ódio contra professores feito por um defensor do Escola Sem Partido em uma página de facebook. Como sabemos, as redes sociais estão cheias de pessoas que se escondem por trás do anonimato e da distância física para vomitar ódio e preconceito impunemente e nenhum grupo pode ser diretamente culpado pelas ações destas pessoas. No entanto, argumentarei neste texto que algumas representações – dos professores, das escolas e de referências teóricas do campo educacional – estimulam esta onda de ódio contra professores e professoras. As representações que analisarei são difundidas nos seguintes espaços: o site e a página de facebook da organização “Escola Sem Partido”, no perfil público de seu criador e organizador, Miguel Nagib, e na página dos “Professores a favor do Escola Sem Partido” na mesma rede social.
A minha proposta é, inicialmente, listar alguns procedimentos discursivos utilizados pela organização “Escola Sem Partido” e seus seguidores, para, em seguida, analisar textos e imagens que utilizam estes procedimentos de maneira a criar um ambiente de ódio em relação aos professores e deixá-los com medo de fazer o seu trabalho de acordo com seu saber profissional. Foram selecionadas para a análise seis imagens – duas relativas a pensadores da educação, duas sobre a escola e duas representações de professores e professoras – que serão analisadas em conjunto com os textos que as acompanham.
Destaco dois procedimentos discursivos intrinsecamente articulados e utilizados neste ataque aos professores. Um primeiro procedimento é a utilização de termos que não possuem uma definição precisa, de maneira que uma ampla gama de casos possa ser enquadrada usando estas expressões. Cito, como exemplo, os termos: “doutrinação ideológica”, “ideologia de gênero” e “marxismo cultural”. Em todos os casos, termos cunhados para desqualificar uma prática deturpando a sua concepção original. O segundo procedimento, diretamente associado ao primeiro, é desqualificar os professores (especialmente aqueles que se opõem ao projeto), a escola e algumas das referências teóricas utilizadas no campo da educação. Esta desqualificação não se dá através de uma argumentação racional, mas através de ataques pessoais e imagens que representam o professor, a escola e seus pensadores como ameaças a crianças inocentes, e citando casos particulares considerados assustadores e insinuando que uma parcela significativa dos professores age da mesma maneira, mesmo que não tenham nenhum dado estatístico para apoiar esta generalização indevida. O primeiro e o segundo procedimentos se articulam: o uso de termos que não têm uma definição precisa para apontar uma ameaça abstrata que coloca em suspeição todos os professores e todo o sistema escolar.
Começo minha análise por um texto compartilhado no site da organização Escola Sem Partido – o discurso proferido pelo prof. Dr. Bráulio Porto em uma audiência pública sobre o tema da doutrinação na Câmara dos Deputados. Transcrevo a definição do termo ideologia à qual o professor afirma ter chegado depois de trinta anos de trabalho sobre o tema: “Um discurso ficcional e simplista que se apresenta como verdade a ser assegurada em última instância pelo controle total do poder governamental” (p. 3). O prof. Bráulio propõe esta definição para concluir que o “paulo-freirianismo é profundamente ideológico no sentido da definição por mim proposta anteriormente”. Notem bem que ele não falou em Paulo Freire, mas em “paulo-freirianismo”. Isso porque ele se negou a discutir algumas questões por falta de tempo: “se Paulo Freire era, ele próprio, paulo-freireano. Ele era. Mas isso nos levaria a discutir uma questão análoga à relação entre Marx e o marxismo (que recusou a paternidade do marxismo… e do filho que teve com a empregada doméstica dele). E nem se Paulo Freire e os paulo-freireanos são aquilo que Lenin chamou de ‘idiotas úteis’ da causa comunista” (p. 4-6). Este é o nível das discussões divulgadas pela organização Escola Sem Partido: desqualificando o trabalho complexo de pensadores importantes através do recurso não da crítica, mas da calúnia e da difamação de cunho pessoal.
E qual é a grande conclusão à qual chega Bráulio? “Parece-me, portanto, que a doutrinação político-ideológica em nossas escolas é um problema muito real em nosso país. Eu diria até, por razões que ficarão mais claras adiante, que o cartaz que causou tremenda indignação nas redes sociais ao conter os dizeres “Chega de doutrinação marxista! Basta de Paulo Freire!”, expressa um dos diagnósticos mais lúcidos da crise política que o país está vivendo neste momento” (p. 7). Paulo freire e Karl Marx seriam os responsáveis pela crise? Apenas indiretamente, porque a causa do “problema da doutrinação” seriam os cursos de formação de professores, especialmente a pedagogia.
O ataque a alguns dos principais referenciais para pensar a educação escolar, no entanto, não para por aí. Eis uma foto compartilhada pelo criador da organização em seu perfil público:
Imagem compartilhada noperfil público do criador da organização Escola Sem Partido
Alguns argumentariam que imagens como essas seriam comuns nas redes sociais, mas insisto que imagens como estas estimulam o ódio contra os professores e referências teóricas legítimas no campo de pesquisa educacional. A analogia baseada na similitude de relação entre o professor e seus alunos e entre o vampiro e suas vítimas é utilizada corriqueiramente pela organização em questão. A página do Escola Sem Partido no facebook adota a estratégia de divulgar eventos que se propõem a discutir o projeto de lei 867/2015 e, ao fazer isso com um evento organizado pela ANPUH-RJ e seu GT de Ensino de História e Educação, usou os seguintes dizeres: “Professores de história da ANPUH reivindicam autonomia para vampirizar os alunos”. Ao divulgar o quadro como a lista dos “deveres do professor” (criado pela própria organização e a ser fixado em todas as salas de aula de acordo com o PL 867/2015), registrou, junto com uma imagem similar à reproduzida acima: “A afixação desse cartaz nas salas de aula – como prevê o PL Escola Sem Partido – terá o efeito de uma estaca de madeira cravada no coração da estratégia gramsciana que vampiriza os estudantes brasileiros há mais de 30 anos”. Um dado assustador: este ano completamos trinta anos do final da ditadura.
As imagens do professor e da escola/universidade como o agente e o espaço da corrupção de menores inocentes estão se multiplicando nas páginas de defesa ao projeto escola sem partido. Vejam os dois exemplos abaixo:
Imagem compartilhada em um comentário na página de facebook do Escola Sem Partido
Nesta imagem a campanha de ódio dirigida ao Partido dos Trabalhadores e aquela dirigida aos professores e às escolas/universidades mistura-se. As universidades, controladas pelo PT, estariam praticando bullying ideológico contra os alunos universitários e transformando-os em militantes com camisas do Che Guevara. É interessante notar que a principal mudança é que os alunos antes de passarem pela universidade acreditariam na meritocracia e gostariam de trabalhar no futuro e depois combateriam a meritocracia e teriam perdido o seu amor pelo trabalho, que seria substituído pela dependência de políticas de ação afirmativa e cunho social. Esta imagem sozinha poderia render uma ampla análise sobre a defesa da meritocracia e o ataque às políticas de ação afirmativa, mas vou destacar a imagem da universidade como o espaço de corrupção da inocência das crianças. A imagem seguinte tem como um dos seus alvos a escola:
Novamente a crítica à escola/universidade se mistura com a crítica ao PT. Não vou nem falar da representação extremamente ofensiva dos presidentes Lula e Dilma, o primeiro como um analfabeto e a segunda como uma mulher idiota. A frase diz “‘Pátria Educadora’ não é só isso… … é ISTO!!!”. Ocupando o topo do prédio da escola, existe um monstro alado: em seu peitoral está escrito “movimentos sociais” e em cada uma das asas, “luta de classes” e “ideologia de gênero”. Existem placas explicitando quatro elementos proibidos na frente da escola: a Cruz, a Estrela de David, um coração e um cérebro. A escola representada como um espaço terrível de corrupção dos inocentes. E quem são os agentes desta corrupção? Os professores. Analisarei duas representações dos professores, a primeira remete às ameaças da “luta de classes” e aos “movimentos sociais” e a segunda, à dita “ideologia de gênero”.
A professora vestida de vermelho tem, como único pensamento, a imagem da foice e do martelo, símbolo do comunismo. Seus alunos imóveis parecem hipnotizados, enquanto a professora corta seus pensamentos para que eles assumam a mesma forma que o seu. De novo: alunos inocentes manipulados e corrompidos por uma professora que impõe seu pensamento através da manipulação. Mas, na minha opinião, a imagem mais chocante de todas é a que reproduzo abaixo, que tem relação com o termo “ideologia de gênero”. Este termo foi criado por grupos que tentam desqualificar e, até mesmo, demonizar o trabalho com a questão de gênero nas salas de aula. A meta, em grande parte já alcançada, é criar um termo que remeta a medos difusos de que as crianças aprenderiam a ser gays e lésbicas em sala de aula e que os professores estariam tentando destruir a família tradicional. Esta deturpação vil do trabalho do professor foi capturada na imagem abaixo:
Uma mulher, com seus cabelos presos, usa os seguintes adereços: pulseiras, um pentagrama tatuado no braço (referência comum ao satanismo), uma estrela vermelha na camisa (a única coisa colorida e uma referência, de novo, ao PT) e um símbolo que parece o do anarquismo. Tanto nesta imagem como na anterior os olhos das professoras não aparecem, ocultos pelos seus óculos, reforçando a sua desumanização. Na camisa desta mulher está escrito “escola pública”, ou seja, ela representa a professora da escola pública. Essa professora segura uma criança mais baixa do que ela, que presumivelmente é um dos seus alunos. Na camisa da criança está escrito “jovem inocente” e ela tem seus olhos arregalados e corpo relaxado, como se estivesse hipnotizado ou paralisado, e sua cabeça está aberta, sem o seu topo. A professora então vomita dentro da cabeça da criança uma substância, sobre a qual está escrito “lixo”. Ao lado do desenho, uma fala que parece ser da professora: “Religião é para pessoas estúpidas… tudo o que você precisa é de sexo, sexo, sexo…”. A interpretação da imagem é muito direta, agressiva e vil para que precisemos analisá-la em detalhe. Estes movimentos afirmam que a “ideologia de gênero” teria como meta incentivar os alunos a abandonar a religião e incentivá-los a fazer sexo. Discutir gênero em sala de aula não é isso. É problematizar a violência doméstica. É trazer para a sala de aula a representação de famílias de diferentes configurações. É permitir que as pessoas de diferentes orientações sexuais se percebam representadas, e não silenciadas, no conhecimento produzido nas escolas. A estratégia aqui, como nos outros casos, é utilizar alguns casos particulares, onde a questão pode ter sido malconduzida por um professor, para proibir a discussão de toda uma temática central ao entendimento da realidade na qual estamos inseridos.
Os procedimentos discursivos descritos no início deste texto são repetidos nos casos analisados. Sempre usando termos com definições imprecisas que podem englobar todos os focos de ódio e medo, como “ideologia de gênero” e “marxismo cultural”. Repito, termos cunhados especificamente para desqualificar determinadas práticas e questões de debate. Não existem defensores da “ideologia de gênero”. Existem educadores que não se negam a discutir a complexa realidade dos alunos, que é permeada também pelas relações de gênero. Os professores, as escolas e referenciais teóricos importantes para os campos educacionais são atacados não através da argumentação racional, mas de representações no qual aparecem como monstros ou vampiros que abusam e corrompem crianças inocentes, tentando transformá-los em militantes ou degenerados sexuais que só pensam em sexo.
Convido todos a combaterem com veemência estas representações e as organizações que as tem difundido. Os professores são educadores que prezam pela pluralidade de ideias e não se negam a discutir todas as questões que permeiam a realidade dos alunos. Nosso objetivo é capacitá-los para compreender a sociedade em que vivem e atuar sobre ela.
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