“Oh tempos, oh costumes!” Com essa frase, Marco Túlio Cícero encerra o seu primeiro discurso, de um total de 4, contra Catilina, em processo de julgamento no Senado de Roma, em 63 a.C.
Catilina foi julgado pelo crime de conspiração contra a República de Roma. As Catilinárias, que reúnem os discursos de Cícero contra Catilina, destacam um aspecto que foi crucial à história da derrocada política de Roma.
O processo contra Catilina revelava mais do que um caso isolado de conspiração. Representava um processo de corrupção daquilo que foi a República, em que, no lugar das virtudes políticas e do decoro, passou a conviver com uma luta vil pelo poder que, gradativamente, deslanchou-se para a violência.
Para Cícero, a violência significava a morte da política e a derrocada de qualquer possibilidade de espírito público. Não apenas nas instâncias políticas centrais, mas na sociedade como um todo. A conspiração de Catilina obrigou Cícero, nobre senador romano, a juntar sua legião e lutar contra a derrocada da República.
Derrotou Catilina, porém mais tarde viu a decadência da República em 42 a.C., tendo morrido pouco tempo depois. A República esfacelou-se em guerras civis, encontrando uma solução para os conflitos que devastou suas conquistas apenas na força de um império que ascendeu.
O domínio da força foi a solução final e a morte da política, nas palavras de Cícero. Se a República era plural porque reunia em si diversas sociedades, o Império quis unificar a vida romana na homogeneidade religiosa do cristianismo. O império da lei deu lugar ao império da força e a política morreu com esta luta fratricida pelo poder.
A história é importante porque nos oferece razões para a experiência e a sabedoria da prudência. Prudência que, no Brasil, tem faltado à elite política e tem contaminado a sociedade de modo devastador em nossos costumes.
“Oh tempos, oh costumes!” Resta a pergunta: que costumes? As representações sobre o Brasil sempre nos colocaram no lugar da cordialidade e do afeto. Não é o sentido inocente de uma simpatia natural do brasileiro, mas do fato de agirmos mais motivados com o coração e menos com a razão.
O Brasil de agora assemelha-se a uma Roma em ebulição. Se o processo de democratização sinalizou para a construção de uma sociedade democrática, plural em seus princípios, balizada no exercício da liberdade e da igualdade, nos vemos agora no desafio de afirmarmos estes princípios contra a possibilidade da força, das conspirações e do infortúnio.
O mensalão e a lava jato estão virando parcos detalhes em uma sociedade que tem namorado com a força e com a exceção, na impossibilidade do diálogo franco e transparente, nas soluções de consenso e no império da lei. A corrupção que nos assola agora não afeta apenas os recursos públicos.
Por esta razão a corrupção já é perniciosa em si. Mas também está afetando o regime democrático. No fundo desse processo está um fator oculto que tem afetado o Brasil: uma profunda intolerância política que caminha para a exceção.
Racismo, machismo, preconceitos regionais, violência crescente, desajustes políticos, vingança, conspirações, impossibilidade do diálogo, a falta de soluções comuns e um pedido ainda silencioso pela força são problemas relevantes, mas também são sintomas de uma política que cede ao jogo mais vil da luta pura e simples pelo poder e uma sociedade que se torna cada vez mais ávida pela intolerância.
Há de se notar que as duas coisas andam juntas e dilaceram qualquer ordem republicana. Assumimos discursivamente os diversos estereótipos da sociedade brasileira, sem qualquer tipo de reflexão acurada sobre os nossos problemas. Dispensamos a razão e buscamos a construção de sentimentos e afetos que nos aproxima de uma das emoções mais sequazes para a política: o ódio.
O ódio de classes, o ódio regional, o ódio contra os negros, o estereótipo das feminazis, o ódio oculto e não pronunciado contra os evangélicos, contra as religiões afrodescendentes, o ódio partidário, o ódio contra os gays. São todas expressões de uma irracionalidade que veta qualquer possibilidade de diálogo entre diferentes.
Este ódio nos adorna como costume. Somos uma sociedade acostumada à intolerância e que é cega à igualdade. Uma sociedade intolerante não é apenas incapaz de conviver com as diferenças. É uma sociedade que cria hierarquias, as quais são constantemente pronunciadas e criam, por sua vez, uma enorme desigualdade de poder.
O ódio é o sentimento que nos cega, que destrói os costumes democráticos e que impossibilita a convivência dos diferentes. Uma sociedade intolerante é aquela em que os discursos pronunciados são aqueles dos vencedores e derrotados, certos e errados, sabujos e ignorantes. Sociedades que se dividem entre o bem e o mal e que toma a violência como método da política.
Uma sociedade intolerante nega-se a si mesma. Projeta-se para fora, rejeitando seus próprios feitos. É uma sociedade que se apequena nos corações e obscurece as mentes. Uma sociedade intolerante é aquela que faz da conspiração um método, da luta pelo poder um fim e da corrupção uma forma de governar. Uma sociedade intolerante não consegue ser democrática, porque vê na força a solução final para os conflitos. Uma sociedade intolerante é autoritária por definição e espírito.
Impeachment, mensalão, operação lava jato, trensalão, pixulecos e coisas que tais são apenas cenas de uma ópera bufa, em que estereótipos e opiniões ditos e repisados aos prantos à esquerda e à direita, entre progressistas e conservadores, valem mais do que conhecimento e racionalidade. Tivemos um surto de esperança.
Mas hoje nos resta apenas uma sociedade que clama pela força. Loquaz em suas expressões, tendo o ódio como expressão máxima, caminhamos por tempos obscuros, sem direção, sem razão, sem objetivo. Pelo simples método da corrupção como forma de governar uma sociedade intolerante em seus costumes.
O desarranjo nos exigirá paciência e prudência. Mas como sermos prudentes quando todos querem o ódio de forma loquaz?
Talvez Catilina fosse visto como herói no Brasil. Vá saber. Mas o fato é que estamos matando a política e a capacidade de estabelecermos igualmente uma sociedade democrática. Matando a igualdade, matamos a República.
Matando a República, nos resta apenas a possibilidade da força. Com isso, matamos a liberdade. O cenário que nos avizinha é o do esgotamento e do vazio, onde o ódio e a intolerância prosperam e crescem. Quem terá coragem de liderar um pacto pela democracia e pela República? O silêncio apenas nos invade. “Oh tempos, oh costumes!”
* Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG
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