Malulaíma, o herói sem nenhum caráter
Malulaíma fazia muitos negócios, não se incomodava de vender fiado. Tanto fiou, tanto fiou, tanto brasileiro não pagou que afinal quebrou
19/03/2016
Helio Gurovitz, O Globo
No fundo do mato-virgem, nasceu Malulaíma, herói da nossa gente. Sua mãe dizia: “Meu filho, cresce depressa e vai pra São Paulo ganhar muito dinheiro”. Malulaíma vivia deitado, mas, se punha os olhos em dinheiro, dandava pra ganhar vintém. Se o incitavam a falar, exclamava: “Ai! Que preguiça!”. Um pajé avisou que o herói era inteligente. Malulaíma cresceu, ficou amigão de dois feiticeiros, pai Duda e pai João. Queriam transformá-lo em imperador. Malulaíma tinha nascido feio. Pai Duda fez uma mágica. Deu nele um banho de loja, ficou igualzinho a um banqueiro loiro de olhos azuis. Malulaíma deixou a consciência na foz dum rio, bandeou-se para São Paulo. Ao chegar lá, pôs-se a realizar a profecia da mãe. “Eu tenho uma opinião de sapo e, quando encasqueto, aguento firme no toco”, dizia. Pai Duda se afogou num temporal de lama, mas pai João sobreviveu para dourar os sonhos de Malulaíma. O herói campeava léguas a fio, mas não queria saber de trabalhar. Ficava contrariado. Ter de trabucar, ele, herói... E murmurava desolado: “Ai! Que preguiça!”.
Descobriu em São Paulo que tudo era máquina. Resolveu ir brincar com a máquina para se tornar imperador. De onde tirar dinheiro? Ele tinha um amuleto lá do mato, uma pedra em formato de estrela vermelha, enfeitiçada por pai João: a Petequitã. Com ela, hipnotizava incautos e poderosos. Todos abriam os bolsos pro herói, em especial os engravatados que construíam prédios e pontes, os empreiteiros. Malulaíma também recebia ajuda de outros engravatados, os políticos. Ele tinha muita lábia. Chamava os políticos de “monstros na grandiosidade incomparável da audácia, da sapiência, da honestidade e da moral”. Nem percebia quando enganava. “Não foi por querer não. Quando reparei, estava mentindo.” Foi assim, com sua lábia e o feitiço de pai João, que Malulaíma virou enfim imperador.
Ele se dizia perseguido, fazia pose de pobre — e lá vinha mais dinheiro pingando no seu bolso. Seu maior truque era se fazer de vítima do gigante Efeagacê, um comedor de gente que morava num palacete lá na Rua Maranhão. Malulaíma enganou os três filhos do gigante: Aecim, Geraldim e Zezim. Uma feita, foi até flechado por Efeagacê, mas, malandro, levou a melhor. Dizia ter desprezo pela elite, tudo aquilo que as paulistanas aprenderam com as mestras de França. Aí aparecia fantasiado, pegava a máquina telefone, ligava pros cabarés, pedia lagostas e francesas. Depois ligava pros empreiteiros, pedia mais dinheiro. O cacau vinha até do estrangeiro. Apartou 40 vezes 40 milhões de bagos de cacau. Às vezes, despejava uma batelada para seus seguidores, uma esteira de chocolate onde se regalavam, seguindo a Petequitã.
Malulaíma fazia muitos negócios, não se incomodava de vender fiado. Tanto fiou, tanto fiou, tanto brasileiro não pagou que afinal quebrou. Ficou injuriado. Campeou légua e meia e topou com uma macumba cheia de empregados-públicos. Foi lá que provou o caxiri temível, cujo nome é cachaça. Não teve jeito e apareceu a polícia. “Teje preso!”, falou o grilo. “Preso por quê? Não estou fazendo nada.” Até que Malulaíma caiu no chão e invocou a Jararaca Elitê. “Com a jararaca ninguém pode não.” O povo ficou com vontade de pelear e, de todos os lados, gritavam: “Larga!”, “Não leva!”, “Solta!”. Formou-se um furdunço temível. Então Malulaíma se aproveitou da trapalhada, pegou a Petequitã — e pernas pra que vos quero! Foi tentar arrumar uma pensão do governo. Jacaré ficou preso? Nem ele. Acabou-se a história e morreu a vitória. Tem mais não.
Helio Gurovitz é jornalista e colunista da revista “Época” e do portal G1
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