Não é possível que, a essa altura dos conhecimentos, ainda pairem dúvidas sobre a importância da leitura. Ler não é apenas ter uma relação sensual com o livro, namorar sua capa, verificar o seu papel, apreciar a tipologia, olhá-lo de frente, cheirá-lo, senti-lo, ouvir o som das páginas virando, decifra-lo com requinte, ou com volúpia, devorá-lo todinho. Ler é também se atualizar, aprofundar os conhecimentos, deixar a imaginação voar para lugares possíveis e improváveis, argumentar com interlocutores atentos e inteligentes. Apesar disso, a imagem da pessoa que lê é, frequentemente, a de um chato...
É verdade que, às vezes, somos surpreendidos com excelentes iniciativas, como a campanha que a Rede Globo realiza no intervalo dos jogos de futebol, mas o fato é que ainda estamos longe de ter, em nosso país, uma cultura e ações efetivas que favoreçam os leitores já existentes e, mais do que isso, que estimulem o hábito da leitura em outros. E, no entanto, sabemos que o livro, prioritariamente, mas também os jornais e as revistas, são os melhores instrumentos para aprofundar uma informação, fazendo com que de simples notícia ela se transforme em conhecimento.
Não que outras mídias não sejam importantes. Mas, por sua própria natureza, rádio e tevê se prestam muito mais à transmissão de um dado ligeiro, necessariamente mais superficial e efêmero. Além disso, ao ouvir o rádio ou assistir à tevê, a pessoa será obrigada a receber as informações que outros escolheram para transmitir, sem poder selecionar aquelas pelas quais tem interesse, como pode fazer na leitura de jornais e revistas. Sem falar que, nos telejornais e locuções de rádio, o ritmo da leitura é ditado pelos emissores, e não pelos receptores, que são obrigados a, bovinamente, se adaptar ao "presto" ou "adagio" dos locutores e âncoras. Já na leitura de textos escritos, o ritmo é ditado pelo próprio leitor, que, por isso mesmo, reage e interage muito mais com jornais, revistas e livros, desenvolvendo melhor seu espírito crítico.
A questão não é nova e não estou descobrindo a pólvora. Apenas me espanta o descompasso entre o discurso dos programas de governo e o que efetivamente é realizado em favor da leitura. Talvez isso aconteça porque, em última instância, a sociedade deles não exija. E ficamos, salvo as exceções de praxe, com importantes jornais, assim como revistas de informação e cultura, presos a tiragens ridículas, cada vez menores, num país que se jacta de ter cada vez mais gente alfabetizada, mais gente terminando o ensino médio e mais gente matriculada na universidade.
Alguma coisa deve mesmo estar errada quando o movimento editorial só cresce na medida em que se expandem as compras governamentais de livros didáticos do ensino fundamental. E quando obras importantes, que nos anos 70 e 80 tinham tiragens de 5.000 exemplares e, nos anos 90, de 3.000, agora, quando são publicadas, não ganham uma edição superior a míseros mil ou 2.000 exemplares.
Claro que o governo pode colaborar por meio de programas sérios e consistentes de compra de livros de qualidade para bibliotecas públicas. Mas há mais a ser feito: é chegado o momento de somar esforços, envolver e comprometer setores da sociedade que podem e devem fazer muito a favor da leitura. Talvez, juntando os esforços de entidades como a Câmara Brasileira do Livro e a Associação Nacional de Jornais a secretarias de cultura municipais e estaduais, pudesse-se criar uma certificação para os "amigos da leitura".
A idéia é simples: os hotéis seriam estimulados a instalar luz de leitura nos quartos, em vez de miseráveis abajures com lâmpadas de 15 Watts, além de manter uma pequena biblioteca à disposição dos hóspedes. Os concessionários de linhas intermunicipais de ônibus, em vez de instalarem aparelhos de televisão, seriam estimulados a manter lâmpadas adequadas de leitura e uma pequena biblioteca com obras adequadas ao percurso, algo que deveria também ocorrer nos trens do metrô. Salas de espera em ãroportos, consultórios e clínicas médicas devem ser convidados a respeitar frequentadores e pacientes, oferecendo cantos silenciosos e bem iluminados, que tornem a espera menos sofrida.
Oferecendo certificados de "amigos da leitura" aos responsáveis, estaríamos desenvolvendo um papel verdadeiramente educativo. Um segundo passo seria divulgar esses "amigos", o que jornais e revistas poderiam fazer para valorizar aqueles que os valorizam.
Mas apenas "diplomar" as pessoas não resolve o problema. Há que dar oportunidade para que elas possam, de fato, ler. O trabalho conjunto de educadores, entidades, empresários e governos é o caminho possível para que a leitura seja reintroduzida como prática cotidiana, e não como atividade eventual, feita por uma certa "gente diferente" e esquisita, que anda por aí com um livro na mão. Acesso aos bens culturais é condição básica para a democracia. A igualdade de oportunidades passa pelo direito à leitura.
Jaime Pinsky, 64, historiador, professor livre-docente da USP e titular da Unicamp, é autor de "Cidadania e Educação" e organizador de "História da Cidadania", publicados pela Editora Contexto, da qual é diretor editorial.
Fonte: Folha de S.Paulo
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