quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Quem conta um conto - O caso do espelho - Ricardo Azevedo

O caso do espelho


 Versão do conto popular por Ricardo Azevedo



 Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé
esquecida nos cafundós da mata.
 Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho
pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou, com o
espelho nas mãos:
― Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?
―Isso é um espelho – explicou o dono da loja.
Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai.
Os olhos do homem ficaram molhados.
― O Senhor... conheceu... o meu pai? – perguntou ao comerciante.
O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de
vidro e moldura de madeira.
― E não! – respondeu o outro – Isso é o retrato do meu
pai. É ele sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o
nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?
O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os
ombros e vendeu o espelho, baratinho.
 Naquele dia, o homem que não sabia de quase nada
entrou em casa todo contente. Guardou cuidadoso o espelho
embrulhado na gaveta da penteadeira.
 A mulher ficou só olhando.
 No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e
correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira,
desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o
sinal―da―cruz tapando a boca com as mãos. Em seguida,
guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.
 ― Ah, meu Deus! – gritava ela desnorteada. – É o retrato de outra mulher! Meu
marido não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira
solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu!
Quando o homem votou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher,
chorando sentada no chão, não tinha feito nem comida.
― Que foi isso, mulher?
―Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?
― Que retrato? –perguntou o marido, surpreso.
Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!
O homem não estava entendendo nada.
― Mas aquilo é o retrato do meu pai!
Indignada, a mulher colocou as mãos no peito:
― Cachorro sem―vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um
velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa?
A discussão fervia feito água na chaleira.
― Velho lazarento coisa nenhuma! – gritou o homem, ofendido.
A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo.
Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar para casa.
― Que é isso, menina?
― Aquele cafajeste arranjou outra!
― Ela ficou maluca – berrou o homem, de cara amarrada.
― Ontem eu vi escondendo um pacote na
gaveta do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver
o que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!
A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o
retrato.
Entrando no quarto, abriu a gaveta,
desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos.
Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada.
― Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha,
cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, caduca, torta e desdentada que eu já vi
até hoje!
E completou, feliz, abraçando a filha:
― Fica tranquila: a bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!


AZAVEDO, Ricardo. O caso do espelho. In: Nova Escola, maio 1999, p.28-9,

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